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O socialismo autogestionário é possível, necessário e urgente

As respostas irracionais do capital a esta crise mundial – que não pode ser confundida com catástrofe – nos colocam mais uma vez o desafio de construção do socialismo autogestionário.

Estimados amigos e camaradas, peço desculpas por estar ausente deste momento importante para a história e para o presente dos movimentos sociais latino-americanos. Parabenizo diretamente o Centro de Memória Operária e Popular e indiretamente a iniciativa da Flaskô, fábrica de cultura desmercantilizada e fábrica de unificação das lutas dos movimentos sociais que nos surpreende positivamente a cada mês. Gostaria de começar pela seguinte pergunta: por que o socialismo autogestionário é necessário e urgente?

Para mim, neste século XXI a ordem do capital só irá produzir barbárie. A destruição do Estado de Bem-Estar Social na Europa e a continuidade do Estado do Mal-Estar Social no resto do mundo são consequências de uma sociedade irracional. Para dar alguns exemplos, o Papa não tem cara de papa, Berlusconi promove festinhas Bunga-Bunga e tem explícita relação com a máfia, Sarkozy expulsa ciganos e promove reformas na previdência à revelia das manifestações dos trabalhadores. Na Espanha, Portugal e Grécia, 40% dos jovens estão desempregados e o Estado possui dívidas impagáveis. Na Inglaterra das últimas semanas, os jovens protestaram contra a irracionalidade do capital e foram pedagogicamente punidos. A mídia do capital e o Governo Inglês insistem em classificá-los como “vândalos sem causa”, obviamente desconsiderando as razões sociais da revolta. Dívida pública estratosférica, neo-fascismo, desemprego, subemprego, retorno da fome e da miséria na Europa são as palavras recorrentes numa região que conseguiu criar um capitalismo com rédeas e parcialmente desmercantilizado, mas ainda assim dentro da órbita do capital no período 1945-1973.

O capitalismo sob hegemonia financeira, a turbo-mercantilização e o retorno da acumulação primitiva só podem sobreviver através do aumento da repressão, da criminalização dos movimentos sociais, dos assassinatos de lideranças, tal como os que ocorreram recentemente na Amazônia. Numa ponta o Estado promove a “pelourização” dos movimentos sociais e na outra uma imensa drenagem de fundos públicos para socorrer as crises mundiais.

Para citar um exemplo latino-americano, a sociedade argentina reagiu ao processo de financeirização da sua economia no ano de 2001, financeirização esta que ganhou força a partir do duro golpe de 1976, que jogou as forças populares argentinas no chão. No ano de 2001, eles lutaram e disseram “Basta! Fora todos!”. Era um sinal de cansaço das reformas neoliberais e da neocolonização da sociedade argentina. No entanto, a revolta popular de 2001 rapidamente se transformou numa proposta neo-desenvolvimentista sob o manto da família Kirchner. Hoje temos uma Argentina dominada por corporações multinacionais, elites regionais, bancos e o setor exportador de carne e couro, todos eles promovendo direta ou indiretamente a super-exploração do trabalho, seja com carteira assinada ou através do subemprego.

No Brasil, a integração de parcelas dos trabalhadores à sociedade de consumo de mercadorias descartáveis e a geração de emprego precário somente aprofundam a alienação dos trabalhadores. Se FHC foi uma ave de rapina que liquidou o patrimônio público e destruiu a nação, o PAC-to de dominação da dupla Lula-Dilma é mais sofisticado, pois gera emprego e neutraliza as lutas dos movimentos sociais. FHC representava os interesses de curto prazo de um capital voraz, Lula e Dilma representam o capital que aprendeu com os erros dos anos 1990 e retoma estratégias de dominação de longo prazo, dando parcela mínina da renda aos miseráveis. Para o professor Paulo Lima Filho, Lula e Dilma estão criando a “pequena burguesia dos miseráveis”.

As respostas irracionais do capital a esta crise mundial – que não pode ser confundida com catástrofe – nos colocam mais uma vez o desafio de construção do socialismo autogestionário. A história já nos mostrou que a autogestão é possível. Marx nos mostrou em diversos dos seus escritos que é possível construir uma sociedade sem classes sociais, sem patrões, que supere o sistema salarial e o Estado. Inúmeros exemplos na América Latina do século XX nos permitem dizer que o trabalho desalienante na produção de casas é possível e necessário. Da mesma forma o lazer desmercantilizado, o transporte decente e não permeado pela acumulação de capital. Em outras palavras, a atividade de trabalho pode ter sentido social, pode haver graus crescentes de controle da produção e reprodução da vida material. Da mesma forma, a superação da hierarquia na fábrica e a urgente necessidade de coordenação global da produção pelos produtores livremente associados são temas desafiadores para este novo milênio.

A falência do “socialismo real” também gera aprendizado. Mesmo com inúmeros avanços no início, a experiência degenerou. Para Mészáros, a URSS criou uma “sociedade pós-capitalista e não pós capital”. Os trabalhadores contestaram os meios de produção, mas um corpo separado dos trabalhadores controlava as decisões estratégicas da sociedade: como produzir, o que produzir, para quem produzir, reproduzindo o capital sob nova roupagem.

Acredito que a autogestão é necessária enquanto proposta totalizante. Para mim, o problema dos trabalhadores latino-americanos não está circunscrito ao trabalho em sentido stricto. As soluções fragmentadas, segmentadas, departamentalizadas, dispersas e difusas não servirão mais neste século XXI.

Procuro diferenciar as lutas pontuais que ocorrem aqui e acolá das lutas anti-capital, também chamadas pelo nome de lutas anti-sistêmicas. Darcy Ribeiro certa vez afirmou que o Brasil é um país em permanente guerra civil. A cada dia explodem lutas pontuais que nem sequer sabemos que estão acontecendo, muitas vezes silenciadas pela mídia do capital.

Acredito que as lutas anti-sistêmicas, ao contrário das lutas pontuais, contestam os pilares do capital e em alguma medida vivenciam, de forma embrionária, o que seria uma sociedade para além do capital.

Para dar alguns exemplos, as lutas das Mulheres Camponesas no Rio Grande do Sul contestam a hierarquia familiar na medida em que as mulheres “não querem lavar o cuecão dos maridos” e restabelecer o patriarcalismo no assentamento. No entanto, as pesquisas da professora Maria Orlanda Pinassi têm mostrado que as lutas das trabalhadoras passam pela questão “feminista” mas transcendem esta questão, passam pelo viés “ambiental” (alimentos envenenados, transgênicos, patentes, etc), mas transcendem esta questão, passam pelo tema classe, mas também o transcendem.

Em algumas fábricas recuperadas, houve uma superação da divisão do trabalho capitalista na medida em que o conhecimento, que ficava retido nas mãos de alguns, passou a ser socializado. A dependência em relação aos “engenheiros-capatazes” e ao tipo de trabalho – um trabalho complexo – realizado por eles foi modificada em alguma medida. Aqui também é importante lembrar que na Revolução dos Cravos (Portugal), os engenheiros ajudaram a superar a organização taylorista do trabalho em função de uma filosofia de vida. Se lutassem por salários, certamente não ficariam nas fábricas tomadas pelos trabalhadores.

Nos casos mais avançados, se esboça a superação do sistema salarial, através do princípio “de cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo as suas necessidades”. Em outros casos, há uma maior aproximação “salarial” (retiradas) e a criação de fundos, seja para apoiar as lutas de outros trabalhadores, seja para permitir a alguns trabalhadores o acesso a universidade, seja para melhorar os rendimentos de fim de ano, etc.

Não deixa de ser importante destacar o caso de uma fábrica recuperada argentina onde eles criaram um fundo para melhorar o “salário” (retirada) dos trabalhadores que tinham maiores gastos com filhos. Isso nos lembra o princípio da “igualdade substantiva” desenvolvido por Mészáros a partir dos escritos de Marx e Babeuf. Para articular seu argumento, Mészáros recorreu ao seguinte parágrafo do socialista francês Babeuf. Vejamos:

A igualdade deve ser medida pela capacidade do trabalhador e pela carência do consumidor, não pela intensidade do trabalho nem pela quantidade de coisas consumidas. Um homem dotado de certo grau de força, quando levanta um peso de dez libras, trabalha tanto quanto outro homem com cinco vezes a sua força que levanta cinquenta libras. Aquele que, para saciar uma sede abrasadora, bebe um caneco de água, não desfruta mais do que seu camarada que, menos sedento, bebe apenas um copo. O objetivo do comunismo em questão é igualdade de trabalhos e prazeres, não de coisas consumíveis e tarefas dos trabalhadores (Babeuf, apud Mészáros, I. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007).

Acreditamos que este princípio também ajuda a orientar as lutas dos movimentos das trabalhadoras “feministas” mais avançados e de outros movimentos sociais que tentam implementar o princípio da igualdade substantiva. Sobre isso, lembro-me de um caso relatado pelos amigos do Coletivo Usina (um grupo de arquitetos e cientistas sociais que prestam assessoria aos movimentos sociais). Eles disseram que num mutirão chegou-se a pensar em dividir o trabalho “igualitariamente” entre todos os membros. Logo perceberam que tinham pessoas idosas, infartados, e trabalhadores/as com outros problemas que não poderiam exercer o “mesmo” trabalho pesado que outros puderam. Disso decorre o princípio de Babeuf: “um homem dotado de certo grau de força, quando levanta um peso de dez libras, trabalha tanto quanto outro homem com cinco vezes a sua força que levanta cinquenta libras”.

Ainda nos casos mais avançados de fábricas recuperadas, os trabalhadores cooperados fazem de tudo para não terem um estatuto diferenciado em relação aos terceirizados, ou seja, lutam para que todos sejam cooperados. É importante destacar este fato porque há uma parcela razoável de fábricas recuperadas que está contratando terceirizados, para nós um sintoma da degeneração das mesmas.

Parcelas dos alunos/monitores que estão nas Incubadoras de Cooperativas estão recusando o trabalho alienado e promovem conscientemente uma atividade teórico-prática anti-capital. Julio Mella, um marxista cubano, se perguntava: “A quem devemos servir: aos exploradores ou aos explorados?”

As lutas da Zanón e da Flaskô vivenciam o classismo, o anti-peleguismo nos sindicatos e as possibilidades de expansão do classismo na Argentina dilacerada e no Brasil do PAC-to de dominação. No caso da Zanón, eles têm como princípios inúmeros pilares anti-capital: rodízio e revogabilidade de cargos, unificação e internacionalização das lutas dos trabalhadores, as relações de gênero na fábrica, uma nova relação com os intelectuais e professores, a necessidade de desmercantilização da produção e superação da organização do trabalho taylorista-toyotista. Trata-se, enfim, de uma afronta ao trabalho alienado, nos limites estreitos do atual contexto de avanço da barbárie e com inúmeras contradições.

De uma forma mais tímida, pois aqui estamos num terreno mais complicado, alguns movimentos sociais contestam o sistema produtor de mercadorias e criam soluções para a desmercantilização.

As escolas do MST nos mostram que o povo quer uma educação para além do capital, que supere a miséria intelectual promovida pelas políticas educacionais de dominação brasileiras. As escolas itinerantes, os Centros de Agroecologia, a Escola Josué de Castro e a Escola Nacional Florestan Fernandes nos desafiam diariamente a pensar pedagogias que insiram as escolas nas lutas dos trabalhadores, que preparem para o trabalho coletivo e não separem a concepção da execução, que teorizem e ajudem a implementar a produção de alimentos saudáveis e desmercantilizados, além da criação de hábitos autogestionários e da compreensão da realidade social dentro da sua totalidade (complexos temáticos do grupo de Moisey Pistrak).

As lutas da Flaskô – fábrica de cultura desmercantilizada, as lutas pelos babaçuais livres, as lutas de algumas fábricas recuperadas na América Latina pelo controle do processo de trabalho e instalação de assembleias no chão de fábrica e a contestação da propriedade dos meios de produção pelo MST também tocam em questões vitais para os movimentos sociais anti-capital do século XXI.

Sobre a última questão, Mauro Iasi afirmou recentemente que os capitalistas deveriam “devolver aos trabalhadores os meios de produção para que suas vidas sejam poupadas”. A “expropriação dos expropriadores” (Marx) ou “O retorno do caracol à sua concha” (título do meu livro lançado recentemente pela Editora Expressão Popular) é uma tarefa urgente, mas atenção: pode deixar a alienação do trabalho inabalada.

Para mim, há uma grande urgência da unificação das lutas anti-capital. Elas deverão combinar e articular suas necessidades mais imediatas com as necessidades de superação do modo de produção do capital, que transcenda completamente a órbita do capital. Para isso, a conjugação de tolerância entre os trabalhadores de diferentes ramos/setores e a crítica sincera, é vital. É isto que está sendo colocado em alguma medida pelas fábricas Zanón e Flaskô.

Julio Mella, um jovem marxista cubano que ajudou a lutar pela revolução universitária no seu país, certa vez disse: “Triunfar ou servir de trincheira aos demais. Até depois de nossa morte somos úteis. Nada de nossa obra se perde”. Mella, mesmo tendo sido brutalmente assassinado, foi e nos é “útil” neste século XXI. Ele está vivo. Nos ajuda a renovar a pesquisa e a atuação no campo do socialismo autogestionário, a retomar o debate clássico para fazer avançar a teoria e a prática revolucionária. Para mim o socialismo autogestionário é possível, necessário e urgente neste novo milênio.

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